A Mãe do Gueto de Varsóvia – Irena Sendler
O que leva uma pessoa a pôr em risco sua própria vida para salvar outras? Mesmo quando não tem com elas vínculos nem partilha de sua identidade, ideologia ou religião? Estas são as perguntas que teimam na minha mente após saber dos feitos de Irena Sendler.
A conheci quando já não era possível conhecê-la. Em 13 de maio de 2008 foi publicada uma breve nota de 11 linhas em O Estado de São Paulo: “Morreu ontem em Varsóvia, aos 98 anos, Irena Sendler, que salvou milhares de crianças judias durante a ocupação nazista da Polônia. Entre 1940 e 1943 Irena, que era assistente social, tirou 2500 crianças do Gueto de Varsóvia. Ela chegou a ser presa e torturada pela Gestapo em 1943, mas nunca revelou os nomes das crianças que salvou”.
No mesmo dia iniciei uma busca desesperada na internet, com o sentimento de haver perdido algo de muito precioso e singular. Perguntei a meus colegas e alunos se sabiam dela, se tinham livros ou documentos, relatos de testemunhas, crônicas de jornal. Ninguém lera, ninguém ouvira a seu respeito. Mas como, em um mundo que corre atrás de celebridades, que sabe o número do sapato desta ou daquela atriz, que esmiúça a intimidade de futebolistas, políticos, empresários, que sabe onde e com quem janta uma top model – como pode ter passado despercebida a trajetória de uma mulher que, nas palavras do rabino Michael Schudrich, “não somente salvou as crianças judias, mas também salvou a alma da Europa”?
Em 1965 Irena Sendler foi agraciada com a medalha “Justos entre as Nações do Mundo”, outorgada pelo Instituto Yod Vashem a não judeus que salvaram e protegeram judeus durante as atrocidades nazistas da II Guerra Mundial. Essa honraria ela não pode receber porque os líderes comunistas que governavam a Polônia de então proibiram sua saída do país. Recém em 1983, quando reiterada a distinção pela Suprema Corte de Israel, é que foi ao encontro das homenagens oferecidas em Jerusalém na Autarquia Nacional para Recordação dos Mártires e Heróis do Holocausto.
Contudo, sua vida e inusitada coragem emergiram do silêncio em setembro de 1999 pela curiosidade e criatividade de quatro jovens americanas que, instigadas pelo Prof. Norm Conard, começaram a pesquisar sua história. Na região rural do Kansas, na escola secundária protestante de Uniontown, o Prof. Conrad propôs a seus alunos que para celebrar o Dia Nacional da História criassem um projeto original, que fosse além das fronteiras e das personagens conhecidas, dos fatos já explorados. Apenas como sugestão mostrou um recorte do jornal News and World Report, cujo título era “Outros Schindlers”, e que mencionava Irena Sendler. Entre os alunos, quatro estudantes prontificaram-se a realizar a pesquisa, mas nunca imaginaram que esta as levaria a encontrar a própria Irena, viva, com 90 anos, morando ainda na Polônia. Estabeleceram contato, enviaram e recebera m cartas, fotos, informações, documentos. Acabaram por escrever uma peça de teatro intitulada A Vida num Pote de Vidro, que apresentaram na própria escola em fevereiro de 2000. A comunidade toda envolveu-se no sucesso e logo chegaram convites de igrejas, sinagogas, centros culturais. A peça atravessou o país, alcançou o Canadá, a Europa e, finalmente, a própria Polônia. Já foi encenada mais de 300 vezes e hoje está disponível em DVD.
Para termos uma dimensão do valor desse resgate, e do impacto que provocaram as experiências vividas por Irena Sendler, basta dizer que até 2001, quando aconteceu o primeiro encontro das alunas da Uniontown com sua heroína na Polônia, havia apenas uma página sobre ela na internet, quando hoje podemos encontrar mais de 90.000 citações. Elas revelam a abnegação e destemor de uma jovem polonesa, cristã, que sobrepujou as ameaças ao seu instinto de sobrevivência e nos legou a mais alta realização de um ser humano: o amor incondicional.
Irena nasceu em 15 de fevereiro de 1910 nos subúrbios de Varsóvia, onde seu pai, na condição de médico, clinicava e atendia comunidades carentes. Dele aprendeu o sentido da solidariedade e o senso de responsabilidade profissional: quando a epidemia de tifo irrompeu em 1917 ele foi o único médico a permanecer na área infectada, o que o levou ao contágio e conseqüente morte.
Na década de 30 Irena ingressou na Universidade de Varsóvia, formou-se em Assistência Social e tomou contato com sentimentos e atitudes anti-semitas por parte dos estudantes, com quem manteve franca oposição. Já diplomada, ingressou no Departamento de Bem Estar Social, atendendo os refeitórios populares que acolhiam órfãos, anciãos e os pobres. Sua vocação ultrapassou a vocação de servidora pública – providenciava roupas, medicamentos e dinheiro para os necessitados, e os distribuía entre católicos e judeus indistintamente.
Em 1939 as tropas nazistas invadiram a Polônia e em outubro de 1940 criou-se em Varsóvia o “bairro judeu”, onde foram confinados todos os judeus da cidade. Em pouco mais de duas semanas a população dessa área passou de 160.000 pessoas para 400.000. Em 15 de novembro desse mesmo ano o governador alemão de Varsóvia, Hans Frank, criou oficialmente o gueto, que foi logo murado tornando-se o palco de crueldades inomináveis, sistemáticas e consecutivas visando um único propósito: o extermínio dos judeus. Também foi palco das ações heróicas de Irena, cuja indignação encarnou o voto de resistir à barbárie sabotando uma e outra vez – 2500 vezes! – o plano da “solução final”.
Como assistente social dos serviços públicos ela tinha autorização para entrar no gueto com um passe especial, o que lhe permitia livre trânsito, conhecimento da situação e, sobretudo, contrabandear comida, medicamentos e roupas. O racionamento de alimentos chegou a limites insuportáveis e as pessoas começaram a morrer de fome. No arquivo elaborado pelo historiador Emmanuel Ringelblum, resgatado depois da guerra entre as ruínas do gueto, lê-se: “Viver sem pão, sem nenhuma colher de comida quente durante anos atua como choque sobre a psique humana. Muitos, esgotadíssimos, foram acometidos de total apatia. Permaneciam deitados até que perdessem a força de se levantar. (...) Entre esses havia famílias inteiras com dez a doze pessoas. Permaneciam estendidos, imóveis, os rostos pálidos, olhares ardentes, engolindo sal iva. Para eles tudo se tornava indiferente. Queriam apenas uma coisa, sentiam apenas um desejo: o de conseguirem um pedacinho de pão”.
Irena percebeu que seus esforços para mitigar o sofrimento só conseguiam prolongá-lo. Decidiu então iniciar a retirada de crianças de dentro do gueto – ao menos elas precisavam ter uma chance.
Extra-muros trabalhava a resistência do Zegota, uma organização clandestina, na qual assumiu a coordenação da Divisão das Crianças, cuja missão era, primeiramente, encontrar instituições de amparo, conventos e casas de família dispostos a correr o risco de abrigar as crianças que fossem resgatadas e, depois, obter documentos falsos para elas.
Antes, porém, era necessário convencer as mães, pais ou parentes que entregassem seus filhos a uma desconhecida. Muitos perguntavam, em desespero, por que deviam confiar nela. “Vocês não têm de confiar em mim”, respondia. “Mas não há mais o que fazer”. As informações em Varsóvia, fora e dentro do gueto, corriam à solta. No segundo semestre de 1941 já estavam em operação as deportações e traslados de milhares de judeus em vagões de gado, que levavam às câmaras de gás em Treblinka, aos fuzilamentos em massa, aos cemitérios a céu aberto repletos de moribundos... O abominável não deixava alternativa!
Planejamento coordenado, método e capacidade de descobrir vantagens nos recursos mais improváveis foram as vias que Irena encontrou para a escalada de resgates usando: 1) Túneis subterrâneos que levavam para fora, onde guardas poloneses haviam sido subornados para que “fechassem os olhos”. Pedia-se aos pais que vestissem as crianças com suas melhores roupas. 2) Crianças pequenas eram sedadas e levadas em malas, caixões de defunto, caixotes de ferramentas, baús ou similares. 3) Devido às freqüentes epidemias, e ao medo que os alemães tinham de se aproximar dos doentes, as crianças que conseguissem fingir uma doença, ou que estivessem realmente muito doentes, podiam ser retiradas numa ambulância. 4) Os carros e ambulâncias levaram um cão treinado para latir quando o veículo estivesse parado, assim o eventual choro de uma cri ança escondida não seria percebido pelo guarda que parasse o carro na saída do gueto.
Desse modo, durante um ano e meio de articulações clandestinas, foram salvas 2.500 vidas. Em 22 de julho de 1942 teve início a expulsão em massa dos habitantes do gueto de Varsóvia para os campos de extermínio de Treblinka. Em outubro desse ano o general da SS Jürgen Stroop informou a seu superior Friedrich Krüger que um total de 310.332 judeus do gueto tinham sido “transferidos”. Sobraram apenas 65.000 habitantes, considerados indispensáveis como escravos nas fábricas e oficinas da Varsóvia ocupada.
Em 20 de outubro de 1943 as atividades de Irena Sendler foram descobertas pela Gestapo, que a levou à prisão de Pawiak, onde foi brutalmente torturada, tendo pernas e pés quebrados a pauladas – mas ela não revelou nomes, nem de seus companheiros do Zegota, nem das crianças que havia salvado. Foi sentenciada à morte. Os membros da Zegota agiram rápido: subornaram os responsáveis pela execução e no dia seguinte o nome de Irena Sendler integrava a lista dos poloneses executados. Sob a proteção de um pseudônimo, viveu escondida até o final da guerra – exatamente como as crianças que havia salvo.
Acabado o inferno, Irena desenterrou dois frascos de vidro que escondera no jardim de uma vizinha. Eles continham a lista dos verdadeiros nomes das crianças junto aos inventados nos documentos falsos. Era seu propósito que um dia as crianças pudessem retornar às suas famílias naturais e recuperar sua identidade judaica. Contudo, quase não havia sobreviventes – o heróico levante do gueto de Varsóvia consumira seus últimos habitantes. Constituído então o comitê de salvamento dos judeus sobreviventes, entregou os frascos de vidro a seu primeiro presidente, o Dr. Adolf Berman.
Em 1991 foi reconhecida como cidadã honraria do Estado de Israel; em novembro de 2003 recebeu a mais alta condecoração polonesa: a Ordem da Águia Branca e também o Prêmio Jan Karski “Pela Coragem e Coração”. Foi indicada pelo governo da Polônia, em 2007, como candidata ao Prêmio Nobel da Paz; também nesse ano o Senado da República da Polônia, em resolução especial, homenageou Irena Sendler e o Conselho de Ajuda aos Judeus. Ainda em 2007 foi condecorada com a Ordem do Sorriso – a mais importante distinção concedida por crianças de todo o mundo.
Nunca considerou a si própria, nem permitiu que a investissem na condição de heroína. Em todas as entrevistas e homenagens ressaltou que trabalhava em equipe, que sem seus companheiros de resistência não teria sido possível tamanha ousadia. Em resposta ao convite para uma reunião em sua homenagem, respondeu: “A justificação para minha vida não são honrarias, mas sim a vida de cada uma das crianças salvas pela minha ajuda e a ajuda de incríveis mensageiros secretos que não vivem mais”.
Nenhuma honraria seria capaz de enaltecê-la o suficiente, e sem dúvida não precisou de reconhecimentos para validar sua coragem e amor. Somos nós que precisamos oferecer admiração e gratidão, pois no espelho de Irena Sendler, a despeito de todos os horrores de seu tempo, fica enaltecida a nossa própria humanidade.
Lia Diskin – é co-fundadora da Associação Palas Athena, coordenadora do Comitê Paulista para a Década da Cultura de Paz – um programa da UNESCO. Recebeu da UNESCO o Diploma de Reconhecimento por sua contribuição na área de Direitos Humanos e Cultura de Paz durante as comemorações dos 60 anos da UNESCO.
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Comento ainda, como mais uma curiosidade, que em 1943 enquanto estava presa pela Gestapo, encontrou num colchão de palha uma pequena estampa de Jesus Misericordioso com a inscrição: “Jesus, em Vós confio”, e conservou-a consigo até 1979, quando a ofereceu ao Papa João Paulo II :)
Um exemplo de vida, uma grande mulher..
ResponderExcluirQue bom que existem pessoas como ela no mundo.